quinta-feira, 25 de abril de 2019

Sobre o Perigo de Misturar Direito e Religião: um pedido a Rodrigo da Cunha Pereira



No último Domingo de Páscoa, Rodrigo da Cunha Pereira, atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, fez um alerta sobre o perigo de misturar Direito e Religião. O texto, publicado no Boletim de Notícias Jurídicas CONJUR, contém afirmações fortes e, no entanto, pouco fundamentadas. Nas próximas linhas, meu propósito é solicitar que o autor ofereça esclarecimentos adicionais.

A primeira afirmação forte é de que a “laicidade ainda não é uma realidade” na experiência brasileira. Para sustentá-la, no entanto, seria preciso saber inicialmente como o autor conceitua laicidade. E depois conhecer quais os fatos que indicam que ela ainda não surgiu entre nós. Posso estar enganado, mas parece que ele considera a religião uma coisa perigosa. Numa parte do texto, indica o temor de que o Estado seja “contaminado por verdades e dogmas religiosos”. Noutra, angustia-se com possibilidade de que profissionais do Direito estejam “contaminados por suas convicções religiosas”. A religião contamina? Assemelha-se, portanto, a uma doença? A religião é perigosa? De que modo o Estado deve tratar o fenômeno religioso?

A segunda afirmação forte é a de que o momento atual “dá sinais sérios de retrocesso”, inclusive no que se refere ao “Direito das Famílias”. Ao falar em retrocesso, fica subentendido que o autor acredita que as realidades sociais não se equivalem, mas que, ao contrário, uma pode ser melhor que a outra. Isso aponta para a existência de um critério que seja apto a nos dizer quando estamos evoluindo e quando estamos involuindo. Mas qual seria esse critério?

Outra afirmação forte tem a ver especificamente com o fenômeno religioso. Depois de dizer que ele é importante, o autor pondera que o “problema está em se estabelecer uma única religião como verdade”. Aparentemente, portanto, ter uma religião pode ser bom, mas pretender que uma religião seja verdadeira é problemático. Todavia, dizer que nenhuma religião é verdadeira soa tão dogmático quanto afirmar que somente uma delas o é. Além disso, o autor parece trair a profissão de fé relativista quando faz afirmações sobre o que considera como verdadeiro cristianismo, indicando, inclusive, que o seu princípio máximo deveria ser: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Há algum problema em simplesmente acreditar que existe uma religião verdadeira? Existe um cristianismo verdadeiro e um cristianismo falso? Quem poderia dizer qual é o cristianismo verdadeiro?

A quarta afirmação forte é a de que alguém ou algum grupo pretende impor a sua religião aos brasileiros e instalar no Brasil um Estado “contaminado por verdades e dogmas religiosos”. Mas quem são essas pessoas? E que religião é essa?

Outra afirmação forte tem a ver com a história. Depois de lembrar que o nosso Direito de Família sofreu enorme influência do Direito Canônico, o autor declara que “misturar Direito e religião sempre provocou e gerou injustiças e sofrimento”. Seria interessante dizer se a influência cristã no Direito de Família foi sempre negativa. Não houve nada de bom? Foi tudo permanentemente ruim? Por acaso os ordenamentos jurídicos que não receberam essa influência estão em situação melhor?

A sexta afirmação forte é a de atribuir às “convicções religiosas” de certos profissionais do Direito algumas das deficiências do sistema nacional de adoção, notadamente a de insistir na busca de soluções no interior da “família biológica”, ao invés de “conceder a adoção para quem realmente deseja adotar”. Para dar um tom mais dramático ao tema, o autor acrescenta: “Quanta maldade e perversidade! E tudo em nome de Deus!”. Mas quem são esses profissionais? Onde trabalham? Que religião professam? Que crenças religiosas específicas os fazem insistir nesse tipo de prática?

A sétima afirmação forte é a seguinte: "a nação religiosa que começa a dominar os Poderes da República quer que sejamos regidos pelos princípios bíblicos, que em Levítico 20:13 manda matar o homem que se deitar com outro homem, por exemplo. Ou seja, um texto homofóbico, que não tem mais lugar em uma sociedade que se pretende cristã, tolerante e plural”. Que nação religiosa é essa? De modo mais específico, qual grupo religioso sugere que o texto bíblico citado seja transformado em norma do ordenamento jurídico brasileiro?

Já perto de concluir, reafirmo a impressão de que o autor faz muitas afirmações fortes, sem, no entanto, apresentar justificativas consistentes. Todavia, há uma outra questão, que é mais importante, e atravessa o texto inteiro. O autor trabalha com o pressuposto de que é possível construir argumentos no vento. Imagina que suas ideias não estão ancoradas em certa visão de mundo, mas que pairam tranquilamente no ar. Todos os outros partem de dogmas. Ele, ao contrário, baseia-se na razão pura e simples. Bem ao final do texto, por exemplo, aparece a afirmação de que “a maior liberdade que se pode ter é a de pensar sem dogmas”. Mas, por acaso, esse tipo de pensamento é neutro? Ou é tão dogmático quanto as ideias que pretende combater?

Não duvido da sinceridade do autor. Fico sensibilizado, inclusive, com a frase que ele utiliza para começar o texto: “Morro de medo dos defensores da moral e dos bons costumes”. Para o debate avançar, no entanto, seria conveniente que ele precisasse melhor os pontos de partida. Somente assim é que será possível avaliar se o medo tem fundamento e, caso tenha, começar a discutir de que modo se pode enfrentar os fatores que o desencadeiam.

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